sábado, 27 de março de 2010

“Somos apenas grandes primatas”


Revista GalileuO que nos torna especiais e nos distingue dos outros animais? Desde meados do século 19, quando a ciência passou a aceitar que a mente é fruto do funcionamento do cérebro, biólogos, psicólogos e neurocientistas se empenharam em encontrar maneiras de obter características distintivas do cérebro humano que justificassem nossa "superioridade". Foi nessa mesma época que Darwin nos tirou do berço esplêndido. Se a diversidade animal na face da Terra é fruto da evolução a partir de um ancestral em comum, então nós, humanos, autoclassificados como "os que vêm primeiro" (significado da palavra "primata"), somos feitos à imagem de... outros primatas. Mas, então, por que somos especiais?
Tamanho absoluto não funciona, pois elefantes e vários cetáceos possuem cérebros maiores que o nosso. Tamanho relativo também não: para o pequeno corpo de um camundongo, seu cérebro é enorme. O conforto chegou quando, nos anos 1950, o neuropaleontólogo Harry Jerison calculou o coeficiente de encefalização e demonstrou que, comparados aos demais mamíferos, "nosso cérebro é de 5 a 7 vezes maior do que o esperado para o tamanho do nosso corpo". Considere que o tamanho do cérebro cresce junto com o tamanho do corpo na evolução e olhe para gorilas e orangotangos: donos de corpos até três vezes maiores que o humano, o cérebro deles é apenas um terço do nosso. Para o corpo relativamente diminuto que temos, nosso cérebro deveria ser menor que o dos gorilas. Mas não é. Assunto encerrado: somos especiais.
Mas a ideia de que seríamos especiais não se encaixava com o que eu aprendera na biologia: por que as regras da evolução se aplicariam a todos os outros animais, menos a nós? Após cinco anos de pesquisas determinando e comparando números de neurônios entre espécies de mamíferos, chegamos aos humanos, graças a uma colaboração com a equipe do Banco de Cérebros da USP. Com 86 bilhões de neurônios, não 100, e sendo eles metade das células do cérebro, e não um décimo, mostramos que o cérebro humano é construído exatamente da maneira esperada para um cérebro "genérico" de primata em um corpo de 70 kg - não maior ou com mais neurônios do que o esperado. Sugerimos então que pontos fora da curva seriam não os humanos, mas gorilas e orangotangos, donos ao que tudo indica de cérebros igualmente "normais" de primata, mas corpos exageradamente grandes - o que é facilmente explicável por seu valor adaptativo.
Ou seja: as regras da evolução do cérebro de primatas também se aplicam a nós, como deveriam. Se algo nos torna especial, é a combinação de sermos primatas (e não, por exemplo, roedores, o que nos permite concentrar um grande número de neurônios em um volume pequeno) e, dentre os primatas, os felizes portadores do maior cérebro - e, portanto, do maior número de neurônios. Bons argumentos para Darwin responder aos seus detratores: "Sou primata, sim, e com muita honra".
Felizmente, as plateias atuais parecem aceitar bem a afirmação de que também eles, como Darwin e eu, são apenas primatas grandes. Também, pudera: há 150 anos que Darwin nos prepara o caminho. 
por Suzana Herculano-Houzel (texto publicado na revista Galileu)

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